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corpo

Meu corpo sendo mapa, me faz passar por onde?

"Eu tenho pensado nos meus primeiros momentos de vida, que me foram narrados. Diz que passei dias sozinho numa incubadora, era uma pele de icterícia, não sei como escreve, mas minha avó fala assim. Aí corta pra hoje. Na terapia disseram que essa sensação de solidão, muito bem escondida por mim, vem de lá. De um berço caixa. Fui filho de pais jovens da periferia, cresci sendo a sombra do meu pai ausente. Pois é, tenho o mesmo nome, nasci no mesmo dia e mês e cresci sem ele. Aí meu corpo, hoje, diz que lembra o dele. Hoje tento fazer desse corpo o meu corpo, e unir a mente e corpo a um só. Mas esse corpo solitário já se deixou - seria deixou? - invadir. Eu já vivi o não poder controlar sobre o que iam fazer com meu corpo. Eu acho que não sabia dizer não. Mas não era isso."

Marcelinho e Claudia | Gravação em VHS feita por meu pai, Marcelo Moraes Maia | 1992.
Marcelinho brincando no chiqueiro no dia seguinte à festa de aniversário de um ano | Gravação em VHS feita por meu pai, Marcelo Moraes Maia | 1992.

O corpo é a casa

O relato acima é o meu relato. Resultado de uma escrita em fluxo.

A partir da minha exposição que consigo transmitir o estado de vulnerabilidade, confiança mútua e segurança com o corpo de participantes nos encontros. A partir da minha experiência, movo outras pessoas e seus corpos, gerando novas relações e poéticas. Parto de mim, caminho para as outras pessoas e, a partir disso, nós interagimos e crescemos com a oficina.

"Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a 'o-posição' (nossa maneira de opormos), nem a 'imposição' (nossa maneira de impormos), nem a 'proposição' (nossa maneira de propormos), mas a 'exposição', nossa maneira de 'ex-pormos', com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se 'ex põe'."

Jorge Larrosa Bondía

Registros do primeiro encontro da terceira rodada da oficina na Biblioteca Pública Cassiano Ricardo, Tatuapé - São Paulo.
Registro de caderno com ordem do primeiro encontro da terceira rodada da oficina
Registro de caderno com ordem do primeiro encontro da terceira rodada da oficina na Biblioteca Pública Cassiano Ricardo, Tatuapé - SP.

Memórias do corpo

Constelando os conteúdos das oficinas realizadas, apresento nesta página alguns gestos, rostos, mãos, performances e depoimentos que ficaram gravados em minha memória a partir do corpo de participantes.

Composição poética em parede

Me lembro que o exercício foi inspirado na prática de Viewpoints e Composição de quadro-paisagem. Para esse propósito, antes do encontro, solicitei, via caixa de perguntas nos stories do meu perfil do Instagram, sugestões de improviso, e foi esse o momento que usei um título sugerido por uma amiga professora: Regando as plantas.

O resultado foi muito positivo para o grupo, que relatou o prazer e, ao mesmo tempo, a dificuldade de ficar estático, como em um quadro, aceitando serem vistos de fora.

Registro de grupo antes de realizar exercício de composição corporal em parede
Registro de grupo antes de realizar exercício de composição corporal em parede.
Registro de grupo após realizar exercício de composição corporal em parede
Registro de grupo após realizar exercício de composição corporal em parede.

O corpo estático e o corpo em movimento

Após relaxamento e aquecimento corporal no espaço, o grupo composto deveria recriar o momento de uma foto como uma cena/improviso.

No dia, as pessoas puderam escolher entre duas fotografias e optaram pela figura abaixo. Além disso, trabalharam em grupo com a inversão de papéis de gênero, com o participante Rafael fazendo o papel da pessoa que dança.

A banda de Percival Mackey...
A banda de Percival Mackey posa no telhado do London Palladium com a atriz Monti Ryan, esposa de Mackey (1927). Hulton Archive via Getty Images.

Eu me lembro que, sem saber como trazer som à cena, participantes trocaram os saxofones por palmas, criando um ritmo de palmas para que Rafael dançasse. A cumplicidade das mãos batendo deram o impulso para a dança e, consequentemente, o resultado da cena.

Registro de exercício de composição e improvisoRegistro de exercício de composição e improvisoRegistro de exercício de composição e improviso
Registros de exercício de composição e improviso a partir da fotografia de Hulton Archive. Biblioteca Pública Cassiano Ricardo, Tatuapé - São Paulo, 2024.

Corpos dançantes em uma Biblioteca Pública

No dia desse exercício realizado, ainda não sabia, mas estava com dengue. Me lembro que, ao chegar no espaço, a sala de ensaio tradicional havia sido emprestada para outra pessoa sem meu aviso e meu corpo doía.

Conversa em roda sobre corpo, memória e território
Conversa em roda sobre corpo, memória e território em chegada ao encontro na Biblioteca Pública Cassiano Ricardo, Tatuapé - São Paulo, 2023.

Sendo assim, pensei que poderia ser uma oportunidade positiva para a biblioteca trazer som e movimento por entre as prateleiras. Com livros variados, todas as práticas e momentos foram realizados no espaço e, apesar do cansaço do dia, a energia das participantes me envolveu, gerando belos registros e momentos.

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Registros de encontro realizado entre as prateleiras da Biblioteca Pública Cassiano Ricardo, Tatuapé - São Paulo, 2023.

"Como irradiar acontecimentos? Cada corpo, território fértil para pousar experiências, é um portador de memórias, e é com elas que desenvolve sua trajetória. Ativado pelos sentidos, principalmente pelo de sobrevivência, inerente a tudo que pulsa, segue cotidianamente organizando as matérias ao seu redor, sendo um pouco a cada dia, corpos-gerúndios em manutenção da existência."

Luaa Gabanini

Trabalhando a visão, o sensorial e o espaço com aquecimento corporal musicalizado.

Após a experiência de corpo na sala de livros da Biblioteca, a participante Grazi relatou sua experiência dançando com um livro sobre a guerra.

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Participante Grazi em vivência na biblioteca dançando com livro sobre a guerra.

A partir dessa cena/dança feita em improviso, aproveitamos o título e o contexto político do momento, em que os conflitos fortes entre Israel e Irã voltavam a trazer preocupações mundiais.

Dançar com a Guerra

Carregando o contexto externo, a visão poética de Grazi Viana e o gosto pela literatura e poesia de participantes, foi sugerida a produção de um texto sob o título “DANÇAR COM A GUERRA”.

O resultado da produção movimentou o grupo no último encontro e, em nossa confraternização final, foi relatada a sensação coletiva de afeto e pertencimento.

Com essa vivência, palavras-chave ficaram latentes: Pertencimento; Vínculo; Afeto; Resistência; Memórias e Corpo. Abaixo, os textos produzidos por duas participantes:

Textos das participantes

Graziele Viana

Graziele Viana - Solitária

Entenda! Não quero que vá para sempre, apenas um alívio, um suspiro, uma brecha de saudades.

Seu olhar era fixo e penetrante. Sua mão firme, cuidadosa apoiava-se nas minhas costas suadas. A outra mão segurava delicadamente a minha mão direita tentando manter-se firme.

Ela avançou com o pé direito, eu recuei com o esquerdo. O salão estava vazio. Embriaguei-me com seu perfume. Um perfume de mulher.

Entenda! Cansei de momentos clandestinos, de intimidades sem destinos.

Solitária

Enamorar-se, ter o coração destruído como a bomba de Hiroshima, o olhar desejoso de uma criança quando se encontra com o seu doce preferido, a ardência dos lábios, dos puros se misturando de-li-ci-o-sa-men-te com a pureza do desejo do outro.

Seu olhar persistente misturava-se com o tango ao fundo. Acelerou. Ela avançou em minha direção ao centro com o pé esquerdo, recuei com o passo para trás. Preparou-me e fizemos um giro, giro, giro. A leveza, a maciez do seu vestido girava em tons sóbrios e determinantes. Conduzia-me. Uma respiração longa, paciente. Compreensão no olhar.

A música desacelerou. Meu corpo molhou. Seguia o seu ritmo consciente, seu olhar de carvão travado na minha pupila. O perfume de mulher permanecia. Permanecia a música ao fundo. Soltos dançava pelo ar os meus pensamentos, o encantamento por aquele corpo, o convite do seu olhar. Uma granada sorrindo dentro de mim. Pedia silenciosamente para os minutos durarem, durarem, durarem. Uma trégua nessa minha vida de tragicomédia.

Entenda, senhora (sol)idão. Por favor, me tire da

(Sol)itária

Texto da participante Estefani Moura

Estefani Moura

Estefani Moura - sem título

Ainda é cedo, amor

Mal começaste a conhecer a vida

Já anuncias a hora de partida

Sem saber mesmo o rumo que irás tomar


Presta atenção, querida

Embora eu saiba que estás resolvida

Em cada esquina cai um pouco tua vida

Em pouco tempo não serás mais o que és


Pensei o bastante pra entender o que seria o suficiente,

Um mundo onde tudo está se desmoronando, e aqui dentro não costuma ser tão diferente.

Um peito que decai para um lado onde a vida não parece mais a mesma,

uma despedida quase grotesca

a saudade no toc toc na porta, como se quisesse sempre entrar, sempre participar, sempre, sempre...

e no fim é quase nada, nulo, em branco total.


A única certeza que temos sempre é a do final,

a morte do corpo o descanso de uma alma quase supérflua.

Um sentimento de contínua queda, sem sinal de vida, sem sinal de nada.

Pipipi é isso, e aí?

É tanto tempo pensando no quanto tudo isso passa, e passa

Mas quando passa de verdade?

São tantas dúvidas que não cabem em um texto, em uma mensagem.


Eu tô cansada dessa incoerência sentimental,

De pensar que tô em um outro plano astral,

Não se enxergar no espelho, na compra em uma loja.

É cedo demais pra pensar em uma vida quase chegando ao fim,

É cedo o bastante pra ter tanto, tanto medo do fim?

Irresponsável, grossa demais, não pode nunca fazer nada?

Imatura o suficiente pra não se entender, pra se arrepender de qualquer coisa que faça.

É sempre, nada nada nada.


Eu tô dançando, sapateando, entendo o que eu tenho e o que sou.

Crescendo a cada dia, querendo voltar pra um lugar que eu sei que eu não tô.

Eu juro que tô tentando amor, mas tá difícil,

Eu danço com a guerra pra tentar acabar com isso, é quase impossível.

Meus pés se cansam, a voz se cala e no fim é sempre o mesmo nada, nada, nada.


A vida é um moinho cartola, passa rápido demais, esmagando o que nos resta de paz.

Lembro sempre dos meus pais juntos fazendo o almoço de domingo.

As idas à igreja como de costume.

E os sonhos que pareciam se reconstruir,

Mas onde eles estão agora?

Onde eu tô agora?

Tudo se foi, se findou em um fim de semana, em um ano ou dois

Eu não entendo esse completo desespero,

O anseio de uma vida sem motivação,

Onde eu tô onde eu quero chegar?


Por que tanta pergunta sem resposta?

Tanta música sem nota?

Eu não entendo, eu fujo desse tal entendimento.

Eu sinto aqui dentro,

Algo desmoronando

Bombardeado de sensação,

A metralhadora lotada de mágoa,

Atirando pra todo lado nessa estrada

Ainda não me acostumei a dançar essa valsa.


Mas eu entendo, eu entendo cartola, quando você diz devagar demais

Que tudo isso é passageiro demais,

E que essa vida nada fica como começou

e por fim enquanto danço ao som da sua música (a minha favorita)

Entendo um pouco dessa vida, que às vezes passa rápido o suficiente pra não se entender.

Um dia, lá pra frente quem sabe eu venço a guerra que é

Você

Texto da participante Cintia

Estefani Moura

Cintia - sem título

O ano era 2019, em vários lugares do país ruas decoradas, famílias se organizando para mais um ano novo. Em uma casa não muito diferente uma família também se preparava para ir jantar como de costume na igreja. O sentimento que traduzia era “Ufa concluímos mais um ano”. Ao mesmo instante um deles triste, angustiado pelas circunstâncias da vida, antes de sair o mais novo enfezado “Bora”.

Tirar uma foto? os mais velhos não querendo muito, aceitaram. É comum em todo lar no final de ano tirar uma foto e guardar de recordação (recordação significa memória). Lembrança, é o que essa foto se tornou.

Um deles não está mais entre nós.

No ano seguinte fomos surpreendidos com a COVID que se espalhou em vários países, uma quarentena que durou mais de um ano e milhares e milhares de mortes. Milhões de pessoas viraram lembranças como pássaros que ao descobrir o poder de voar tomam liberdade e voam para bem longe...

Playlist da Oficina

Playlist da Oficina

Quer conhecer as músicas que fizeram os corpos dançar, brincar, atuar e devanear nas oficinas do Museu Autobiográfico e Terrítório_Leste? Acesse: